Aliança de democracias atua para blindar eleição e posse no Brasil. Por Jamil Chade

No Uol

Eram 19h21 do domingo, 30 de outubro. Dia do segundo turno da eleição e crucial para a democracia no Brasil. Na embaixada alemã em Brasília, uma postagem nas redes sociais foi solicitada pela diplomacia de Berlim com uma mensagem simples, mas poderosa. Uma foto da urna eletrônica projetada sobre o prédio do TSE e duas palavras: “eu confio”.

Naquele momento, a apuração mostrava uma corrida extremamente apertada entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. Mas o objetivo dos europeus era outro. Berlim queria deixar claro que, independente de qual fosse o destino da eleição, o que iria prevalecer era a confiança no sistema eleitoral brasileiro.

Não demorou para que, assim que o resultado final foi anunciado, uma enxurrada de mensagens de chancelar ao presidente eleito surgisse nas redes sociais e em telegramas oficiais. Nas 48 horas que se seguiram, mais de cem países pelo mundo já tinham dado demonstrações de que o novo interlocutor do Brasil para o mundo era Lula.

Nada disso, porém, ocorreu por acaso e a operação para asfixiar um eventual questionamento dos resultados das urnas foi preparada durante meses.

Para governos como o de Joe Biden, Olaf Scholz e Emmanuel Macron, o que estava em jogo não era apenas a definição de quem comandaria a maior economia da América Latina, mas o futuro da sobrevivência da extrema direita, inclusive com a capacidade de influenciar na agenda mundial.

A lógica era simples: se o movimento ultraconservador é globalizado e se articula para produzir desinformação e se ajudar mutuamente em diversos lugares do mundo, a reação para a proteção da democracia também teria de ser articulada e internacional. E retirar o Brasil da aliança de extrema direita no mundo seria um importante golpe contra a tentativa desses grupos populistas de redefinir a agenda internacional, inclusive com alianças com Vladimir Putin e líderes que abertamente questionam a democracia liberal.

Entre a eleição e a posse, no final do ano, a equipe de Lula irá manter contatos e proliferar encontros com autoridades estrangeiras para blindar a transição. O temor é de que os protestos bolsonaristas tentem impedir a posse. Neste sentido, Lula usará sua visita à Conferência do Clima, no Egito na semana que vem, para também tratar da posse. Entre os possíveis encontros está uma reunião com Joe Biden e Antônio Guterres, secretário-geral da ONU.

Mas o trabalho da comunidade internacional começou há meses. O primeiro passo concreto veio do governo de Joe Biden, que via no bolsonarismo uma repetição das estratégias de Donald Trump de minar a democracia. De fato, o brasileiro foi um dos raros lideres internacionais a repetir o discurso do republicano de que a eleição nos EUA tinha sido fraudada. Ele foi um dos últimos a reconhecer a vitória de Biden, enquanto seu então chanceler Ernesto Araújo emitiu sinais contraditórios sobre os eventos no Capitólio.

Em maio de 2022, uma visita do diretor da CIA, William Burns, ao Brasil deixaria claro ao governo Bolsonaro que a Casa Branca não iria tolerar uma ruptura democrática e nem um questionamento sobre as urnas. Nos meses que se seguiram, outras reuniões também mandaram recados ao Palácio do Planalto de que suas alegações de que as urnas não eram confiáveis não receberiam respaldo de Washington.

Em julho, a decisão de Bolsonaro de convocar embaixadores estrangeiros para uma reunião também gerou uma preocupação internacional. O presidente usaria o encontro para supostamente denunciar falhas no sistema eleitoral. Naquele mesmo dia, capitais de governos democráticos receberam telegramas de seus embaixadores em Brasília alertando para os riscos no país de que Bolsonaro não reconhecesse uma eventual derrota.

Os temores foram transformados em uma articulação internacional. Do lado da campanha de Lula, uma delegação formada por Jaques Wagner e Celso Amorim visitou ao lado do então candidato embaixadas estrangeiras em Brasília. Entre os diversos temas, um deles era comum em praticamente todos os encontros: a necessidade de que as democracias reconhecessem o processo eleitoral brasileiro e que não houvesse espaço para um silêncio da comunidade internacional diante de um possível golpe ou questionamento dos resultados.

A articulação também envolveu organismos internacionais. Após receber detalhes dos movimentos sociais brasileiros, a Comissão Internacional de Direitos Humanos montou célula de acompanhamento da eleição no país. Na ONU, coube à então alta comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, soar o alerta sobre os ataques de Bolsonaro contra as urnas e contra o Judiciário. O gesto deixou o governo enfurecido e o Itamaraty protestou, em um encontro privado.

Entre agosto e setembro, a articulação ganhou a participação da sociedade civil. Grupos como Washington Office, Instituto Vladimir Herzog e Conectas viajaram até os EUA e para capitais europeias na busca de apoio contra um eventual questionamento das eleições.

O pedido que fizeram era para que os governos estrangeiros emitissem notas de reconhecimento imediato do resultado das eleições.

No Departamento de Estado norte-americano, diplomatas do governo Biden perguntaram sobre a existência de uma margem de risco e se comprometeram a fazer um reconhecimento imediato do resultado das urnas. Para impedir que pressões políticas ameaçassem esse ato dos EUA, uma operação foi estabelecida no Senado americano para que os congressistas pressionassem o Departamento de Estado nesta mesma direção.

Fundamental ainda foi a aprovação por unanimidade de uma resolução no Senado americano alertando que qualquer envolvimento dos militares brasileiros num golpe contra a democracia resultaria na suspensão imediata dos acordos militares entre Brasil e EUA. Generais brasileiros confessaram, nos bastidores, que aquela resolução teve um impacto nas Forças Armadas muito maior que os atos na Faculdade de Direito de São Paulo, em 11 de agosto, em defesa da democracia.

Na Europa, o Parlamento em Bruxelas também se mobilizou, com dezenas de deputados assinando uma carta na qualquer recomendavam à Comissão Europeia a suspensão de acordos e até o uso de medidas comerciais contra o Brasil caso uma ruptura democrática ocorresse.

As perguntas dos europeus giravam entorno dos distúrbios social. Diplomatas da Comissão Europeia tentavam entender em qual cenário de diferença de votos que um eventual caos social poderia emergir.

Dias antes da eleição, os americanos chegaram a telefonar para interlocutores brasileiros para questionar a que horas o resultado seria anunciado no domingo, para que funcionários do Departamento de Estado estivessem mobilizados para lançar o reconhecimento nas redes sociais.

De fato, 38 minutos após o TSE declarar Lula como vencedor, os EUA reconheceriam o “êxito” de uma eleição “justa e transparente”. Num ato coordenado com a Casa Branca, aliados europeus também se apressaram a dar seu reconhecimento ao presidente eleito, criando um cordão sanitário contra qualquer possível ameaça por parte de Bolsonaro.

Biden tentou ligar na mesma noite da vitória para Lula. Mas um problema de comunicação acabou adiando a conversa para o dia seguinte. Em 24 horas de sua vitória, o brasileiro já tinha conversado com mais de 20 líderes internacionais. Entre eles estava Emmanuel Macron, presidente da França e que deixou claro que esperava “com impaciência” por aquele momento.

Nos dois dias que se seguiram, os reconhecimentos vieram inclusive de ditaduras e regimes pouco democráticos, como o da Arábia Saudita, Rússia e China, além dos tradicionais aliados de Bolsonaro na Hungria, Polônia e Itália.

Na esperança de que a desinformação, as operações nas estradas nas redes sociais mobilizassem massas pelo país, o núcleo duro do bolsonarismo se manteve em silêncio por horas após a eleição. Mas o apoio popular que precisavam não ocorreu e, acuado, Bolsonaro foi avisado por seus aliados mais próximos que simplesmente não teria qualquer respaldo internacional se optasse.

Em Washington, na sede da ONU em Nova Iorque, em Bruxelas, Paris ou Berlim, diplomatas não disfarçavam a comemoração: a aliança entre as democracias tinha funcionado. Agora, terá de trabalhar até a posse de Lula.

Em 2019, escola de samba Mangueira levou à Sapucaí um enredo que reivindica para os livros “a história que a história não conta”. Foto: Richard Santos /Riotur

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